Duas naturezas? – F.B. Hole

A Nova e a Velha Natureza

Autor: F. B. Hole

Muitos cristãos experimentam uma grande dificuldade na vida diária como resultado de não terem uma compreensão clara deste assunto. Eles estão conscientes de toda uma série de desejos e emoções de natureza estranhamente conflituosa. O apóstolo Tiago pode fazer a pergunta: “Porventura deita alguma fonte de um mesmo manancial água doce e água amargosa?” (Tiago 3:11). Essas pessoas, entretanto, parecem não ter dificuldade alguma em realizar algo desse tipo, pois em pensamento, palavra e ação eles encontram em si a mais estranha miscelânia possível entre o bem e o mal, até que todo esse problema se torne o mais perplexo.

É uma grande ajuda compreender o fato de que o crente é possuidor de duas naturezas distintas — a nova e a antiga —, uma é a fonte de todos os desejos certos, a outra a fonte apenas do mal. Uma galinha ficaria muito desconcertada se fosse mãe de uma ninhada mista de galinhas e patinhos. Suas naturezas são distintas e, portanto, seus desejos e comportamentos são muito opostos — mas não mais opostos do que as duas naturezas das quais falamos. E muitos crentes se parecem com aquela galinha!

Quando o Senhor Jesus falou a Nicodemos, Ele insistiu na necessidade de ser “nascido de novo” — “nascido da água e do Espírito”, e acrescentou: “O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito” (João 3:6). Consideremos cuidadosamente estas importantes palavras.

Em primeiro lugar, elas indicam claramente a existência de duas naturezas, cada uma caracterizada por sua fonte. “Carne” é o nome de uma, pois brota da carne, e “espírito” é o nome da outra, pois brota do Espírito Santo de Deus.

Então, é evidente que falamos corretamente de “carne” como a velha natureza, pois ela nos pertence como vindo ao mundo na descendência da linhagem de Adão pela geração natural. Já “espírito” é a nova natureza, e ela é nossa, se nascido do Espírito, em decorrência do novo nascimento.

Novamente, estas palavras distinguem claramente entre “espírito”, pelo qual nos referimos à nova natureza, e “o Espírito”, ou seja, o Espírito Santo de Deus. O primeiro é o produto direto de Seu poder de maravilha, e Ele nunca reside em uma pessoa, na qual Ele não tenha operado anteriormente o novo nascimento, produzindo a nova natureza que é “espírito”. Ainda assim, seria um grande erro confundir — como alguns estão inclinados a fazer — a nova natureza com o Espírito Santo, que a produz.

Quando você nasceu de novo, então foi implantada em você, pelo Espírito Santo, esta nova natureza, que é espírito, e um dos primeiros resultados disso foi o inevitável choque desta nova natureza com a antiga, que você herdou como filho de Adão. Ambas lutam pelo domínio, cada um puxando em direção diametralmente oposta, e até que o segredo da libertação do poder da carne interior seja aprendido, a dolorosa confusão entre o certo e o errado deve continuar.

Em Romanos 7, essa dolorosa experiência nos é descrita. Leia com cuidado, notando especialmente os versículos 14 até o final, e continuando sua leitura até Romanos 8:4. Você não vê nela um bom número de características que condizem com as suas experiências?

Nesse capítulo, o orador chega a uma conclusão muito importante: “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Romanos 7:18). A carne [A “carne” no sentido moral — nota do revisor] portanto, é totalmente má e sem esperança, e Deus nos permite percorrer a lama das experiências amargas para que possamos aprender completamente esta lição. “…a carne para nada aproveita” — são as próprias palavras do Salvador (João :63). “Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus” — são palavras que corroboram a história (Romanos 8:8). Sendo assim, dela só virá o mal.

A carne pode ser deixada sem cuidados e sem treinamento, tornando-se assim carne pagã, selvagem e possivelmente até canibal. Ela pode ser altamente refinada e educada, e então é carne refreada, civilizada, cristianizada, mas é carne, pois o que nasce da carne é carne, não importa o que você faça com ela. E nela — por mais que seja carne de alta classe — não habita nada de bom.

O que você pode fazer com uma natureza como essa, uma natureza que é simplesmente o veículo do pecado, na qual o pecado habita e trabalha? Respondamos a essa pergunta com outra pergunta. O que Deus fez com ela? Qual é o Seu remédio?

Romanos 8:3 fornece a resposta: “Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne”.

A lei, desde o princípio, censurou fortemente a carne, mas ela não conseguiu nem refreá-la nem controlá-la para que pudéssemos ser libertados de seu poder. Contudo, o que a lei não podia fazer, Deus fez. Na cruz de Cristo, Ele a tratou judicialmente — “condenou o pecado na carne”, ou seja,Ele o condenou na própria raiz e essência de sua natureza.

Romanos 8:4 dá o resultado prático disso. Sendo a cruz a condenação da velha natureza na raiz de seu ser, recebemos o Espírito Santo para ser o poder da nova natureza, de modo que, andando no Espírito, cumprimos todas as justas exigências da lei, embora não mais debaixo dela como se ela fosse a nossa regra de vida.

Deus então condenou, na cruz de Cristo, a carne — a velha natureza. Mas o que podemos fazer com ela? Podemos, felizmente, aceitar o que Deus fez, e tratá-la doravante como uma coisa condenada. O apóstolo Paulo indica isso quando diz: “Porque a circuncisão somos nós, que servimos a Deus em espírito, e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne” (Filipenses 3:3).

Quando se lê essa passagem, que começa tão positivamente com as palavras “somos nós”, inclinamo-nos a perguntar: “Somos nós?” Estarei eu tão profundamente consciente do verdadeiro caráter da carne — nenhuma coisa boa habita nela, por um lado, e a condenação de Deus dela na cruz, por outro —, que não tenho confiança nela, mesmo em suas formas mais atraentes? Tenha certez; aqui reside o cerne de toda a questão. Esse ponto não é facilmente alcançado. Muitas experiências dolorosas são atravessadas, muitos fracassos são experimentados, enquanto a carne, como um Sansão que se recusa a ser amarrado, quebra as sete vergas de vimes frescos de clamores de piedade e oração, bem como as cordas novas — tão cuidadosamente tecidas — de boas resoluções. Porém, quando uma vez aquele ponto é alcançado, a batalha está basicamente terminada.

A destruição de nossa confiança na carne é em grande parte a destruição do poder da carne sobre nós. Então, imediatamente desviamos os olhares de nós mesmos e de nossos mais sinceros esforços, voltando-nos para um Libertador, e O encontramos no Senhor Jesus Cristo, que tomou posse de nós por Seu Espírito. O Espírito é o poder. Ele não apenas controla a atividade da velha natureza (veja Gálatas 5:16), mas energiza, expande e controla a nova (veja Romanos 8:2, 4, 5, e 10).

Tenha em mente que a nova natureza não tem poder em si mesma. Romanos 7 nos mostra isso. A nova natureza em si mesma dá aspirações e desejos que são certos e belos, mas para que haja força para cumpri-los, deve haver essa submissão prática a Cristo e Seu Espírito — essa caminhada no Espírito, que é em grande parte o resultado de chegar a um acordo real e sincero com a condenação de Deus sobre a velha natureza na cruz de Cristo.

Algumas pessoas têm uma boa natureza e são religiosas quase desde o nascimento. Será que elas precisam da nova natureza da qual você está falando?

Certamente que sim! Aquele mesmo homem a quem o Senhor Jesus proferiu aquelas palavras memoráveis — “Necessário vos é nascer de novo” (João 3:7) — era exatamente desse tipo de pessoa. Moralmente, socialmente e religiosamente — tudo estava a seu favor. Contudo, o Senhor lhe falou terminantemente, não apenas fazendo uma proposta abstrata (João 3:3), mas lhe disse a mesma verdade em forma concreta e pessoal: “Necessário vos é nascer de novo” (João 3:7).

Isso decide a questão. Afinal, a carne boa e religiosa é apenas carne, e não serve para Deus.

Há uma ideia generalizada de que todos teriam alguma centelha de bem neles, e que isso só precisa se desenvolver através da oração e do autocontrole. Isso é bíblico?

É muito antibíblico, na verdade, é contra as Escrituras. Muitas passagens poderiam ser citadas, mas vou me restringir a duas.

A primeira dará evidência negativa. Em Romanos 3:9-19, nós nos deparamos com um retrato completo da humanidade em suas características morais. Os detalhes são retirados das Escrituras do Antigo Testamento pelo apóstolo Paulo. Primeiro temos declarações gerais devastadoras (vv. 10-12), depois outras particularmente incisivas em detalhes horrendos (vv. 13-18), e nem uma única palavra sequer é dita quanto a essa suposta centelha latente do bem. Quão injusto, quão inverídico esse texto, se realmente, afinal de contas, ela estaria lá! O Deus que não pode mentir descreve Suas criaturas, e não menciona esta tal centelha do bem. A inferência é óbvia: ela não está lá.

As evidências positivas se apresentam assim: “E viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente” (Gênesis 6:5).

O apóstolo Paulo coloca a mesma verdade em palavras diferentes quando diz: “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Romanos 7:18) — nem mesmo uma centelha de bem.

Para aqueles que acreditam na Bíblia, tais evidências são bastante conclusivas. Nada mais resta a ser dito.

Uma pessoa se livra da velha natureza no novo nascimento, ou devemos entender que uma pessoa convertida tem tanto a velha quanto a nova natureza dentro dela?

A velha natureza não é erradicada no novo nascimento, caso contrário, não estaríamos lendo: “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em nós” (1 João 1:8).

Tampouco se transformou na nova natureza. O novo nascimento não é como a pedra filosofal, que foi lendário para transformar cada objeto que tocou em ouro fino. João 3:6, já citado, prova isso.

Ambas as naturezas estão no crente, assim como ambas as naturezas estão naquela árvore frutífera comum no jardim (a árvore do bem e do mal – nota do revisor). De fato, o processo de “enxertia” ilustra apropriadamente o assunto em questão, pois por ele o porta-enxerto bravo, no qual o escolhido rebento de maçã cultivada é inserido, é condenado. A faca é aplicada nele, e é drasticamente podado para que o processo ocorra. Além disso, instantaneamente o enxerto é feito e o jardineiro não o reconhece mais como uma linhagem silvestre, mas o chama pelo nome da variedade de maçã nele enxertada.

Assim é conosco; ambas as naturezas estão lá, mas Deus só reconhece a nova, e nós, tendo recebido o Espírito Santo, estamos “não na carne, mas no Espírito” (Romanos 8:9).

Se a velha natureza ainda está lá, certamente devemos fazer algo. Como devemos tratá-la?

É claro que não devemos ser insensíveis à sua presença, nem indiferentes frente a suas atividades em nós, mas ao mesmo tempo nenhuma resolução ou esforço humano contra ela nos adiantará.

Nossa sabedoria está em alinharmo-nos aos pensamentos de Deus e tratá-la como Ele o faz. Comece reconhecendo que agora você está identificado com a nova natureza e com o direito de renegar a antiga. “De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim” (Romanos 7:17). A nova natureza é sua verdadeira individualidade ou identidade, não a velha, assim como a maçã cultivada é a árvore assim que o enxerto se torna efetivo.

Sendo assim, seu tratamento é simples. O jardineiro mantém um olhar atento sobre sua árvore recém enxertada. Se o velho tronco silvestre procura se impor, e lança galhos bravos das raízes, ele corta impiedosamente tais sugadores assim que eles aparecem. Assim, você deve aplicar a cruz de Cristo como uma faca afiada sobre a velha natureza e seus desejos pecaminosos.

“Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra”(Colossenses 3:5). As palavras que enfatizei respondem praticamente aos galhos bravos que brotam do tronco silvestre. O que eles são, o restante do versículo 5 e os versículos 8 e 9 do mesmo capítulo especificam. Mortifica-os — coloca-os à morte nos seus detalhes.

Para isso, você quer energia espiritual, coragem, propósito de coração, que em você mesmo não possui. Sua única força está em olhar simplesmente para o Senhor Jesus, e colocar-se, sem reservas, nas mãos de Seu Espírito.

“…se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis” (Romanos 8:13).

É por muita força de vontade por nossa parte que finalmente obtemos a força do Espírito e venceremos, ou é por nos rendermos e entregarmos a Deus?

Deixe a própria Escritura responder:


“…apresentai-vos [ou: entregai-vos] a Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça” (Romanos 6:13).


“…assim apresentai [ou: entregai] agora os vossos membros para servirem à justiça para santificação” (Romanos 6:19).


“Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e por fim a vida eterna” (Romanos 6:22).

A ideia de que a força necessária é obtida por muita força de vontade por nossa parte parece uma última tentativa desesperada de obter um pouco de crédito pela carne em algum lugar, em vez de condená-la totalmente e dar a glória a Deus.

Será que a nova natureza do crente chega a um estágio de crescimento tão perfeito a ponto de torná-lo seguro contra os desejos da antiga?

2 Coríntios 12 mostra muito claramente que não. Nesse capítulo lemos que o apóstolo Paulo, privilegiado acima de todos os outros cristãos, foi arrebatado ao terceiro céu — à presença imediata de Deus. Depois de ouvir ali coisas tão sublimes que nenhuma linguagem humana poderia expressá-las, ele foi deixado para retomar a sua vida normal na terra. E ele nos diz, que, a partir daquele momento, Deus lhe deu um espinho na carne — aparentemente alguma enfermidade para contrabalancear essa experiência especial —, para que ele não se exaltasse pela abundância das revelações.

Agora, é preciso admitir, que o cristianismo de Paulo era de uma qualidade bastante avançado e extraordinário, e mesmo assim, e ainda levando uma estada temporária no terceiro céu em conta, ele em si mesmo não era seguro contra aquela autoexaltação inerente à velha natureza.

Se ele não estava à prova de balas, nós também não estamos.

Você pode dar alguma dica que nos ajude a distinguir praticamente entre desejos e estímulos, que brotam da velha natureza, e aqueles que provêm da nova?

Não posso lhe dar nada que lhe permita dispensar a Palavra de Deus, e livrá-lo da necessidade de se ajoelhar continuamente em oração com um coração exercitado.

A Palavra de Deus é aquela que é “viva e eficaz, e mais penetrante do que espada alguma de dois gumes”. Só ela pode discernir os pensamentos e intenções do coração (Hebreus 4:12), e o trono da graça está sempre acessível, para que possamos encontrar graça para uma ajuda em tempo oportuno (Hebreus 4:16). O Sumo Sacerdote de Deus é quem faz com que haja graça nesse trono.

A Palavra de Deus e a oração, então, são absolutamente necessárias, se quisermos distinguir e desembaraçar os pensamentos e desejos que encontramos dentro de nós.

Reconhecendo isso, o seguinte pensamento pode nos ajudar: Lembremos que assim como a bússola do marinheiro é fiel ao Norte, também a nova natureza é fiel a Deus, enquanto a velha natureza é fiel a si mesma. Tudo o que tem Cristo como seu objeto e objetivo, procede da nova, e aquilo que tem a si mesmo como seu objeto e objetivo provém da velha.

Sendo assim, milhares de questões perplexas seriam resolvidas com perguntas:

“Qual é o motivo secreto que me move nisso? É glorificação de Cristo ou autoglorificação? Qual dessas?”